quinta-feira, 13 de março de 2014

Diário - 03/04/2013 - O Parto

Quando entrei na sala nojentamente esterilizada, vi uma cena que lembrou (um pouco) "O Exorcista". A patroa estava deitada na mesa, com os mocotós docemente instalados sobre hastes metálicas para dar uma visão panorâmica pro doutor que, já a postos, estava acocorado de cara pro gol, só esperando o neném escapulir. E pelos gritos da Rafa, isso não ia demorar muito (se demorasse o neném já sairia surdo).

Também estavam na sala, duas enfermeiras e três estagiários de medicina, todo mundo atrás do médico olhando pra zona do agrião da minha mulher, como se estivessem vendo a final da Copa (isso me fez lembrar do Vasco. O bebê podia andar logo, pensei, dessa vez baixinho, só por precaução).

Os gritos me fizeram acordar novamente. Corri pra Rafa e segurei a mão dela. Ela agarrou a minha mão com tanta força que eu pensei que dedos quebrariam. Não sabia dizer se os dela ou os meus, mas alguns não sairiam vivos da experiência.

"Seu nome é Thiago, né?" Perguntou o médico.

"Sim senhor."

"Então você vai me ajudar. Tenta acalmar sua mulher e pede para ela respirar. Gritando desse jeito ela perde força e o neném não consegue sair. Já estamos quase lá, mas essa parte é a pior e preciso de toda a concentração dela aqui." Disse apontando pra a saída de emergência da Rafa.

Tá bom! É fácil falar, mas fazer deve ser um pouco mais complicado. Tenta fazer uma experiência você aí. Larga esse texto e concentra no seu órgão. Manda ele te obedecer. Você pode até pensar que manda aí, mas não. O palhaço e a priquita têm vida própria. Eles fazem o que querem, na hora que bem entendem. Naquela hora em especial, por exemplo, a da Rafa devia estar toda encabulada por ter tanta gente olhando. A Rafa bem que tentava, mas a danada não estava nem um pouco a fim de obedecer.

Tentei fazer a patroa atingir o nirvana e controlar a própria priquita dizendo aquilo que achei mais razoável:

"Calma, meu amor."

"Calma? Seu filho duma égua. Você quer que eu tenha calma? Você tem ideia do monstro que tá querendo sair dali? Quando isso acabar eu vou enfiar uma peti de 2 litros no seu rabo e pedir pra você jogar ele de volta pra fora. Quando você estiver chorando e pedindo pela porra da mamãezinha eu vou te dizer 'calma meu amor, é só uma garrafinha no seu toba'. AAAHHHHHHHH". Abençoada contração que fez ela parar com aquilo tudo. Olhei pra traz, quase me mijando de medo e vi que um estagiário tinha saído correndo, mas foi logo substituído por outro. Caralho! Parece que esses bichos brotam de tudo quanto é lado.

"Manda ela fazer força de cocô." Ordenou o médico.

"Hã?" Fiquei totalmente sem reação com o mandamento do zé ruela que já tinha se enfiado de novo no meio das pernas da minha senhora. De onde ele tava pensando que o neném ia sair?

"Vai logo rapaz! Eu acho que o neném tá vindo."

Eu parei de tentar discutir e, principalmente, entender o sentido da bagaça e de bate-pronto chapei o recadinho pra Rafa.

"O quê? Cê tá doido?" Berrou ela no meio de uma contração. Os litros de baba e suor que voaram da boca dela desenharam uma parábola linda na sala. A luz branca das 1.567 lâmpadas fluorescentes que queimavam nossos olhos penetrou nas gotículas e formou um belo arco-íris. Tudo isso seria maravilhoso, se a parábola não tivesse terminado na minha cara. Coisas da vida.

"Não discute com o moço, bem. Só tenta fazer cocô."

"Se eu tentar, vou conseguir. Não fiz hoje ainda."

"Não tem importância, querida." O doutorzinho emergiu novamente do meio da minha patroa e se apoiou no barrigão dela. "Aqui tá todo mundo acostumado com isso. Isso é normal demais. Acontece todo o dia. Faz forcinha pro titio, faz?" E com dois tapinhas na barriga dela, voltou a submergir.

Olhei pra trás e a cara de nojo dos estagiários deixava claro que isso não acontecia todo o dia.

Rafa, esbaforida, fez uma força que poderia quebrar uma árvore. Na falta de uma, servia os meus dedos mesmo. Provavelmente, juntos, gritamos a uns 160dB.

"Isso querida, está quase. Já posso ver a cabecinha. Ó os cabelinhos dele, que lindos." O médico sorria pra mim como se estivesse na Disney. Maldito sádico.

Não suportei a curiosidade, dei uma de Bial, e fui dar uma espiadinha. O doente do médico estava enrolando o cabelo do meu neném no dedo indicador direito, delicadamente protegido por uma luva latexzenta. A cabecinha já estava pelas metades. Achei o trem estranho, mas nem pude "admirar" muito, porque um bafo quente na minha orelha esquerda me fez olhar pra trás.

Virei rápido (afinal, ninguém funga no meu cangote sem permissão) e vi um estagiário macho e outros dois estagiários fêmeas com um sorriso drogado atravessando a cara espinhenta deles.

"Que foi porra?" Interpelei com educação. "Nunca viram não?"

"Nada tio." Disse a estagiária fêmea da direita. "Tipo, isso é raro pra caraca." Emendou a da esquerda. "Todo mundo entra na faca. As mina não querem correr o risco de ficar alargada no normal." Disse o projétil de macho, abrindo os braços enquanto cuspia a bobajada.

"Cê tá doido, animal. Ninguém vai ficar assim não." Retruquei com água nos olhos (estava com um cisco no olho, só pra esclarecer). "Né doutor?" Resmunguei entre os dentes para o médico.

"Ná!!! Relaxa. Depois que o neném sair, eu costuro tudo de volta."

Entendi isso como uma coisa boa... a gente tem que positivar a situação nessas horas.

"Aaaaaaahhhh" O urro me fez lembrar da patroa que, deitada, estava longe de tirar uma soneca ou ter vontade de parar de amaldiçoar minha alma.

"Força, minha filha, agora vai." O médico mostrava todas as canjicas num sorriso doentio. Parecia que ia receber um presente do papai noel. Já estava começando a pensar que o neném era dele, não meu.

A patroa fez força de coco em baixo, apertou meus dedos no meio e quase quebrou os dentes em cima e o neném saiu.

O choro engasgado encheu a sala e outro cisco caiu no meu olho. Maldita sala suja, vou fazer uma denúncia na ANS.

O doutor cepou a mangueira umbigal, a enfermeira secou o aguaceiro e uma gosma branca que eu insisti não saber o que era e passou a trouxinha de carne pra mim. Dei uma conferida no material e vi uma menina linda... inchada, roxa, disforme, chorando e com aquela gosma branca, mas linda.

"A Camila nasceu, meu amor". Disse enquanto me virava pra minha esposa. Antes, porém, de trasladar Camilinha pra Rafa, uma luz atrás de mim me puxou de volta.

A tranqueira do estagiário macho estava lá, risonho, acompanhado pelas estagiárias fêmeas fazendo um selfie na sala. Até aí tudo bem. Se o fundo da porra do selfie não fosse a priquita da patroa.

"Oh! Seus doentes, cêis tão querendo morrer? Vão tirar foto da mãe de vocês, aquela quenga." Eu com a Camilinha na mão fui pra cima do moleques. "Tio, relaxa! Eu só vou postar no face pro pessoal manjar o parto."

"O quê? Postar a foto da minha mulher nessa situação? Eu vou fazer você tirar um selfie do seu intestino, seu merda!"

"Sem violência, tio." Interpelou uma das estagiárias fêmeas. "Ele vai postar num grupo nosso de medicina. Só profissa."

"Ah! E quantos membros tem esse grupo?"

"Uns 940."

"O quê? Puta merda! E desses, quantos são formados?"

"Acho que 8."

"8?"

"Caralho, véi. Pronto. Agora a Rafa vai ser mais conhecida que a tiazinha?"

"Quem?" Perguntou o estagiário macho.

"Cala a boca, não é do seu tempo. Cada uma que me apar... caralho!!!!!"

Quase caí pra trás quando voltei pra patroa. O doutor estava limpando a Rafa por dentro. Não tem como explicar direito o que eu vi, mas pensa numa galinha sendo recheada... pensou? Ótimo! Agora volta a fita. Pronto! Agora você já sabe o que o doutor estava fazendo.

"Oh doido! O que você tá fazendo?"

"Me dá minha filha." A Rafa já estava maluca, ainda não tinha visto a neném.

"Calma rapaz. Isso é normal. Eu preciso tirar os resíduos internos para não haver infecção."

"Mas não tem um aparelho? Tem que ser na mão?"

"Minha filha!!!! Me dá!"

"Tem que enfiar a mão inteira?"

"Calma que eu costuro depois."

"Minha filha!"

"Mas que porra é essa?" O médico enfiou a mão nos miúdos delgados da Rafa e puxou um troço que parecia uma água-viva-do-capeta lá dos confins das entranhas dela.

A mesa da Rafa rodou. A sala rodou. Eu rodei e só parei quando o chão acomodou-se nas minhas costas.

Tudo ficou preto e acordei no quarto, ao lado da cama onde a Rafa estava dormindo como um anjo ao lado da Camila. Meu queixo doía como se tivesse uma faca cravada nele. Depois me contaram que despenquei no chão e minha adorável esposa (e mãe dedicada), preocupada com a cria, pulou pelada da mesa e tentou tirar Camilinha dos meus braços. Como não soltei, ela pisou na minha cabeça até os braços afrouxarem. A mandíbula quebrou na pisação. Coisas da vida.

Pousei 5 quilos de gelo na bochecha na tentativa de sumir com a queimação dos demônios e me aprocheguei da cama. Tentei parar de gemer um pouco para não acordar minha mulherzinha (evitando uns murros nos meus córneos surrados). Como a dona patroa tava despencada no 8º sono, pude mirar um pouco a minha miúda. Sua cara ainda tava inchada, mas a gosma branca tinha escapulido. Do jeito que a Rafa é, nem duvido que ela tenha lambido a menina até ficar "limpinha".

Whatever, a danada é bonita pacas! Desmaiada e enrolada num monte de panos ela parecia ser ainda mais quebradiça... e a única coisa que conseguia pensar naquela hora era que nada a quebraria. Pelo menos eu não ia deixar.

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